terça-feira, 3 de julho de 2007

Um provinciano incurável

Câmara Cascudo

"Mon pays entier vit et pense en mon corps..."- Verhaeren

Cascudo com os netos Daliana e Newton Nasci na Rua das Virgens e o Padre João Maria batizou-me no Bom Jesus das Dôres,Campina da Ribeira, capela sem tôrre mas o sino tocava as Trindades ao anoitecer. Criei-me olhando o Potengi, o Monte, os mangues da Aldeia Velha onde vivera, menino como eu, Felipe Camarão. Havia corujas de papel no céu da tarde e passarinhos nas árvores adultas, plantadas por Herculano Ramos. Natal de noventa e seis lampiões de querosene. Santos Reis da Limpa em janeiro. Santa Cruz da Bica em maio. Senhora d'Apresentação em novembro. Farinha de castanhas e carrossel. Xarias e Canguleiros. Natal que se apavorou com o holofote, enchendo as igrejas de bramidos e arrependimentos. Auta de Souza embalou-me o sono. Pedro Velho pôs-me na perna. Vi Segundo Wanderley declamar. Ferreira Itajubá cantando. Alberto Maranhão passeando a cavalo, manhã do domingo. Tinha treze anos quando veio a luz elétrica. Festas no Tirol. Violão de Heronides França. Livros. Cursos. Viagens. Sertão de pedra e Europa.

Nunca pensei em deixar minha terra.

Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos , sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço. Percepção medular da contemporaneidade. Nossa casa no Tirol hospedou a Família Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo. Intimidade com a velha Silvana, Cebola quente, alforriada na Abolição. Filho único de chefe político, ninguém acreditava no meu desinteresse eleitoral. Impossível para mim dividir conterrâneos em cores, gestos de dedos, quando a terra é uma unidade com sua gente. Foram os motivos de minha vida expostos em todos os livros. Em outubro de 1968 terei meio século nessa obstinação sentimental. Devoção aos mesmos santos tradicionais.

Meu povo tem a mesma idade para o interesse e a valorização afetuosa.

Dois homens quiseram fixar-me fora de Natal:- Getúlio Vargas no Rio de Janeiro e Agamenon Magalhães no Recife. Jamais os esquecerei, porque nada pedira. Alguém deveria ficar estudando o material economicamente inútil. Poder informar dos fatos distantes na hora sugestiva da necessidade.

Fiquei com essa missão. Andei e li o possível no espaço e no tempo. Lembro conversas com os velhos que sabiam iluminar a saudade. Não há um recanto sem evocar-me um episódio, um acontecimento, o perfume duma velhice. Tudo tem uma história digna de ressurreição e de simpatia. Velhas árvores e velhos nomes, imortais na memória.

Em 1946 fiz parte de uma comissão enviada pelo Ministério das Relações Exteriores ao Uruguai. Éramos três: Aloísio de Castro, Angione Costa e eu, único sobrevivente.

Voltando, contou-me Aloísio de Castro que Afrânio Peixoto, sabendo da expedição cultural, dissera num leve riso - "E ele deixou o Rio Grande do Norte? Câmara Cascudo é um provinciano incurável!"

Encontrara meu título justo, real, legítimo.

PROVINCIANO INCURÁVEL !

Nada mais.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

IN HOC SIGMA VINCES!


Por Luís da Câmara Cascudo

O Congresso de Vitória foi uma força pivotante. O de Petrópolis será uma grandeza de extensão. Ante o silêncio da imprensa, que abre colunas a todas as inutilidades, o Congresso ficará mais nítido em sua simplicidade heróica. Movimento de mocidade e de força nova, sem ricos e sem diretores de “opinião pública”, o Integralismo derrubou toda a primeira série de seus inimigos e toma posição para deslocá-los dos pontos onde a inércia da liberal-democracia lhes tinha permitido ficar e fixar-se.
Imprensa que não tem redação e apenas gerência, marxistas de mentalidade hemiplégica, com função unilateral, políticos com antolhos para que vejam apenas a trilha dos programas inviáveis, sociólogos de entrevistas que só pretendeis aderir depois da vitória, independentes a preço fixo, professores de Direito a quem o Estado Burguês entrega sua mocidade para vossas experiências de tóxicos, burocratas da religião automática para quem Pio XI é menos ortodoxo que vosso vigário que não lê “Charitates Christi Compulsi”; meninos bonitos que citam Lênin afagando camisinhas de seda, banqueiros cegos, industriais surdos, guias paralíticos, gente do meu Brasil sonolento, distraído, indiferente, gozador, apático, desdenhoso, sorridente, convencido que as chuvas do dilúvio não cairão jamais, despertai para o combate e para a glória!
Sobre esse vosso braço inútil pregai a letra chamejante que vos distinguirá da manada confusa, do rebanhismo informe, da multidão incolor. Vinde para as fileiras verdes do Integralismo, trabalhar, estudar e sofrer conosco. Não deveis preparar desde já a explicação de vossa comodidade ante o arranco de nossa vitória definitiva. Ficareis marcados para sempre entre os que renegaram a Deus, à Pátria e à Família, material posto de lado, gasto antes do uso, inservível para outra coisa que não seja a adesão ruidosa para a continuidade de vossa digestão de oito lustros. Lembrai-vos que só existe no Brasil um sinal para reconhecermos os brasileiros que estão construindo uma Pátria, na perpetuidade do esforço e do sacrifício. Esse sinal é o Sigma. Brasileiro, mano, camarada, companheiros de várias e de poucas virtudes, a época passou para as vossas literaturas de artifício e de confeitaria. Estais diante de um minuto que definirá vosso pensamento. Lembrai-vos que esse é o momento da Escolha, da Coragem, do Passo Inicial, a marcha para o alto como as nossas saudações. Soltai o volante da “baratinha”, espaçai o banho de sol afrodisíaco, deixai o livrinho que o marxista pintou de ouro para a vossa ignorância, ausência de raciocínio e clareza de dedução. Vêde as ruas, as praças, as estradas de todo o Brasil, cheias de “camisas-verdes” de todas as idades da Fé. Ficareis isolados deste movimento, único em toda nossa existência política?
Nós não queremos vossa amável companhia depois que vencermos. Somos diversos. Um trapo verde não vos identificará como integralista. É preciso uma profissão de fé.
Lembrai-vos das duzentas mil vozes que ressoam pela terra da Pátria. Curvai o ouvido à grande voz esparsa e sonora que sobe de todos os recantos. Em vós, brasileiro por acaso, pousam os olhos inquietos e sofredores de Plínio Salgado, perguntando vossa resposta à pergunta que ele fez ao Brasil. Deveis saber que todos nós nos erguemos, sacrificando tudo, para segui-lo porque acompanhamos o esperado...
IN HOC SIGMA VINCES!
Lembrai-vos enquanto sois apenas neutros.

(“A Offensiva”, 11/10/34, p. 2)

quarta-feira, 27 de junho de 2007

A poesia é a quinta dimensão do mundo


Por Luís da Câmara Cascudo

Três são as medidas do mundo.
Quatro, ensina Einstein. Inclua o tempo.
Cinco! Conte com a poesia...

Santa Tereza de Jesus escreveu: CREO QUE EN CADA COSITA QUE DIOS CRIO HAY MÁS DE LO QUE SE ENTIENDE!

Só podemos entender pelos sentidos e estes nas três medidas clássicas dimensionais. O problema de permanência da Cultura reside essencialmente em sua percepção. De como a recebemos e a tornamos indispensável. E porque esta indispensabilidade independe da escala de valores úteis.

A vitalidade da Arte é a sua libertação do plano econômico, funcional, imediatista para o homem. No esquema dos rendimentos é um assombro perguntar para que serve um poema, uma paisagem, uma escultura fora da significação encomiástica homenageativa da vaidade terrestre.

ALI ART IS QUITE USELESS, escreveu Oscar Wilde. Perfeitamente inútil mas intrinsecamente inseparável da dignidade humana. Durante um momento da história a Arte fixou animais para simbolicamente atraí-los para a regularidade da alimentação pré-histórica.

Depois para compreendermos o abstrato, foi preciso materializá-lo em volume, cor e forma. Quando o canto nasceu, ritmo para oração, a força mágica de sua atração irresistível não estava na voz mas nas fórmulas poderosas na sedução do auxílio divino. Ficou-nos o Poeta ouvindo e vendo o que realmente escapa ao primarismo da audição, visão e tato. É um sentido infra e ultra sonoro e uma visualidade bem distante do poder do nervo ótico, da vibração da retina e da contratibilidade da pupila.

O poeta em todas as cousas sente MÁS DE LO QUE SE ENTIENDE pelas dimensões normais. Nunca se conseguiu uma tradução desta acuidade miraculosa que não é erudição nem dedução. Bergson defendeu a Intuição como elemento aquisitivo da Inteligência. A Intuição, forma maravilhosa do conhecimento sem verificação, não pode ser indicado nos seus caminhos de penetração.

Nem um órgão fisiológico pode orgulhar-se de sua recepção. Ao lado do universo sensitivo e experimental o poeta vê, ouve e sente valores acima e abaixo de todas os diagramas do percurso cerebral. A Inspiração, a vocação irresistível de criar a Poesia é tão misteriosa, enigmática e maravilhosa como a criação da vida organizada.

Porque o Poeta pode "recriar" a natureza e fixar a emoção num poema, ninguém, em época alguma da história do mundo, explicou e compreendeu. Toda cultura tem sua origem e nós podemos pesquisar na pré-história os tímidos bruxuleios da madrugada intelectual. As técnicas, as indústrias, as representações, os gestos, a voz, a sociedade, a chefia, a religião como fenômeno orgânico, as alianças, Estado, o aparelhamento para a conquista comercial e guerreira, a vela para o barco, a roda para o carro, o cavalo para o homem. A Poesia, não. Minerva nasce, armada e completa, da cabeça de Júpiter.

O poema é tão inexplicável como a essência da vida. O primeiro Poeta é tão distante, impenetrável e milenar como a primeira célula viva.

Toda a civilização do Mundo está contida nas três dimensões. A Poesia exige outros horizontes indefiníveis, negaceantes e realmente sensíveis, definidos, poderosos. A poesia é uma Quinta dimensão.

domingo, 10 de junho de 2007

Que quer dizer "anauê"?


Por Luís da Câmara Cascudo


Várias vezes por dia o Integralista ouve e diz essa palavra bárbara e prestigiosa "anauê"!. De onde nos veio? O Chefe Nacional indica as vozes fortes dos amerabas e entre eles o Tupi. Que quer dizer "anauê"? É uma saudação? Um excitamento? Nós empregamos como uma saudação equivalente ao "hurrah" britânico. O "hurrah" é um resíduo guerreiro. É o que resta de um grito de ataque dos germanos. Seu radical, hurr, é guerra.
O nosso "anauê" é mais sereno e melódico. Sente-se que é vocábulo indígena. Um milhão de brasileiros usa essa palavra misteriosa e unificadora.

Mas nós ignoramos seu significado. De minha parte, tenho feito indagações e buscas. Na literatura integralista, só Gustavo Barroso tentou a explicação. Em "O que o Integralista deve saber" (p. 149), o grande
erudito brasileiro examinou inteligentemente o vocábulo. Suas fontes de consulta não foram propícias. Couto de Magalhães e Teodoro Sampaio, o mestre do nhengatú, falharam. O dois tupilólogos não escreveram tudo quanto devemos ler para adiantar passo na "bela língua". Teodoro Sampaio estudou mais a toponímia e Couto foi, com os rudimentos de gramática inferiores ao velho padre Anchieta, um magnífico divulgador de lendas e tradições das selvas brasileiras. Gustavo Barroso, habituado a
vencer, confessou a simplicidade dos seus orientadores. Nem achou a tradução de yauê, que é apenas o mesmo.

As saudações tupis correspondentes aos nossos bom dia, boa tarde e boa noite, são iané coéma, iané ara, iané carúca e iané pitúna.
Iané é pronome "nós", "nosso". Iané coéma, nossa manhã, é o "bom dia". Diz-se até o meio-dia, quando a saudação muda para iané ara, nosso dia. Tardinha até o crepúsculo, saúda-se iané carúca, e, sol posto, especialmente nas despedidas, iané pitúna, nosso escuro, nossa treva, nossa noite.

São estas as saudações tupis.
O saudado deve necessariamente responder. Dirá apenas indauê. Indauê é uma contração de indé, tu, e iauê, mesmo. Traduz-se, literalmente, por "o-mesmo-tu", o mesmo desejo para ti. Iané ara! Indauê!
Aí estão as cortesias dos guerreiros tupis, quando se encontram.

Indauê dará anauê?

Em 20 de dezembro de 1934, consultei uma autoridade com quem privo e me dá a honra da correspondência. É o padre dr. Constantino Tastevin, professor no Instituto Católico de Paris e professor de Etnografia. O padre
Tastevin esteve vinte anos nos rios amazônicos e sua bibliografia é rica e maravilhosa de cor e de espírito.
Tastevin respondeu-me a 26 do mesmo mês e ano. Vantagens do avião que levou de Natal a Paris seis dias ou menos, porque Tastevin respondeu seis dias depois de minha carta.
Ensina Tastevin:
o vocábulo "anauê" não pode ser outro, caso seja emprestado do tupy, senão a resposta vulgar a toda a saudação da língua geral: - Ndawé!
Eu acreditei um tempo que essa palavra devia analisar-se nde yawé, tu também. Mas agora duvido dessa análise.
De fato, a saudação é conforme a hora do dia:
Yáne koéma: amanhecemos.
Yáne potúna: anoitecemos.
Yáne kurúka: estamos na tarde.

Não há portanto razão para responder: Tu também. A única resposta razoável seria a expressão tão célebre, vulgar e comum no Amazonas: "É verdade!" "É isso mesmo!" Assim o compreende a população atual.
Portanto Ndawé! = Yawé-te!
O a acrescido não tem razão de ser. Certas pessoas pronunciam endawé, com um e mudo, dente a dente = a mudo português. Mas em realidade a tal letra não existe na boca dos peritos.
Por outro, este é o único caso onde se emprega a palavra ndawé!
Como foi que se passou de y para nd é que não posso explicar... Mas no decurso dos tempos dão-se tantas alterações ainda mais esquisitas!

A passagem nd para n é comum: nawé por ndawé; a de ña para ya também. Fica para explicar a de na para ya ou nã. Há outros exemplos: a citar, yandu por nandu.
Aqui finda o douto Tastevin. Sua explicação está perfeitamente de acordo com as minhas deduções. Tastevin emprega o w pelo u. Para ele,
o anauê é uma corrução do ndawé, indauê nhengatú.
Será mesmo?
Com essa tradução, o nosso grito de aclamação é inexpressivo. Pelo menos, pouco expressivo. Fazendo a versão gramatical do tupi, três anauês pelo Chefe Nacional!...
É Verdade! É Verdade! É Verdade!
Ou então: - É isso mesmo!...
Pode ser que seja. Aí fica uma segunda tentativa de explicação.
"Anauê" pode ser palavra do tupi não usada pelos indígenas, mas construída, gramaticalmente certa, pelos eruditos. Pode ser um vocábulo artificial e legítimo. Um neologismo da língua geral. A catequese criou centenas. Itauê é mesmo e também igual. Quando um índio quer dizer "meu igual", diz ce amu iauê. Ce, meu; amu, outro; iauê, mesmo ou igual (meu-outro-mesmo ou igual). Anauê pode ser um vocábulo "construído" dessa forma: - a-nâ-iauê, ou (a) nâ (fundido, junto, unido) iauê (mesmo
ou igual): - anaiauê-anauê, com a queda do i vocálico e a fusão das vogais a-a. Teríamos anaiauê, forma inicial do contrato anauê, eu-junto-com-os-iguais; eu-reunido-aos-outros-iguais. É logicamente um grito de unificação, de solidariedade, de reunião.

Anauê, para todos os modos, é voz de apelo, de agrupamento, toque-de-reunir. O emprego como aclamação seria uma aclimatação de voz
militar nas cerimônias civis.

Como "hurrah" chegou a constituir o mais pacato dos berros entusiastas, anauê pode se haver transformado também.

Não posso provar, mas sonho que, inicialmente, anauê seja um grito, um sinal, uma ordem de reunião, de coesão, de agrupamento. De Integralismo, evidentemente. Mas, que quer dizer "anauê"? A viagem pelo tupi não aclarou a significação negaceante. Nem podia aclarar.

Anauê não é vocábulo do idioma tupi como julguei sempre.
É uma palavra, cujo sentido ignoro, da língua dos Pareci, índios Nuaruacos da província do Mato Grosso. Roquette Pinto recolheu ("Rondonia", fonogramas 14.594 e 14.595) uma cantiga Pareci, onde deparamos o famoso "anauê".
ah ah ah ah ah ah
Noai anauê noi anauê
Noai anauê noi anauê
ah ah ah ah ah ah
etc...

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Salve Pátria!


O poema a seguir, de autoria de Luís da Câmara Cascudo, foi publicado na revista "Anauê" de agosto de 1935...

Salve Pátria !

Mãe de heroísmos, vida, força, esplendor, esperança nossa, salve ! A vós bradamos, os humildes soldados de vossa grandeza, e a vós suspiramos, gemendo e sonhando nesta hora de combate. Ela, pois, advogada do nosso passado, a nós volvei, perpetuamente, os exemplos dos nossos mortos e depois da batalha, conservai-nos puros ante vossa presença augusta.

Bendito seja o fruto da vossa história. Oh nobre ! Oh altiva ! Oh sempre gloriosa Pátria, mantem-nos fiéis ao espírito e à Terra do Brasil, para que possamos viver em vosso serviço e morrer defendendo as cores sagradas de vossa BANDEIRA IMORTAL !